Portugal no seu jardim plantado à beira mar /
nasceram Morangos e Floribelas na campa de Salazar
Halloween in Um jardim à beira mar
O Hip Hop Tuga (péssima expressão!) tem o grande feito de ter trazido de volta a língua portuguesa para a música de cariz urbana, depois de oportunistas bacocos como os Blind Zero e Silence 4 terem tentado sepultado a língua numa enorme campanha de pseudo-globalização – previsivelmente falhada dada a óbvia falta de originalidade desses projectos. Só que os “hip hop tugas” ficaram-se por aqui, foram a resistência para o uso da língua lusa mas falharam tudo o resto ao apropriaram-se deste estilo musical de forma dogmática sem reflectirem se o modelo norte-americano fazia ou não sentido para a realidade portuguesa. Talvez por isso quase não há personalidades distintas no Hip Hop português, ou pelo menos é muito raro encontrar. Não faltam, claro, figuras inchadas, cheias de si, que contribuem apenas para que esse “Hip Hop Tuga” seja aquilo o que vernacularmente se pode chamar de uma “grande punheta” – digo-o não de forma gratuita porque basta ouvir as letras autofagicas e masturbatórias para perceber o que digo.
Claro que temos uma serie de instrumentistas competentes ou esgrimistas exímios de palavras (Sam The Kid, X-E-G) mas estas excepções surgem por serem os virtuosos de uma cena medíocre que segue um “beat” unilateral. Nas periferias deste movimento ainda vamos encontrar dois casos interessantes embora equidistantes, por um lado os Niggapoison, descendentes de Cabo Verde que começaram como banda de Hip Hop e cada vez são mais Dancehall e Kuduro, e do outro os beirões Factor Activo, vindos do Rock e que usam o Hip Hop para retratar a urbanização da província. São dois casos tangenciais ao âmago da cena. Dentro dela conheço só dois rappers que fugiram aos “templates”, são o Nerve e o Ex-Peão. O primeiro fazendo uma caricatura da vida “white-trash” e o segundo como retrato do homem desesperado versus a máquina do sistema. A juntar a estes dois artistas, (re)conheço agora Allen Halloween, com o seu novo e segundo álbum A Árvore Kriminal (Sonoterapia; 2011), que sim senhora, considero o “álbum do ano” em Portugal!
Escreve-se sobre ele nas “wikipedias”, que Allen é um luso-guineense que vive em Portugal desde os 4 anos num subúrbio lisboeta e que é um tipo reservado. Talvez por causa disso que o concerto que assisti na Music Box no final do ano tenha sido uma treta, não parece que o Halloween seja um tipo “live” – embora geralmente os concertos naquela casa nocturna não são bons, diga-se, ou porque não enche, ou porque é estupidamente cara a entrada e consumo, ou o habitual: o som da sala é péssimo. Seja como for, desconfio que Allen é bicéfalo – não se nota, ele esconde muito bem e realmente no concerto não descobri a sua segunda cabeça! Uma delas trata de temas que poderiam ser autobiográficas e pessoais enquanto que a outra encarna personagens malditas do gueto como o dealer durão ou o bêbado irrecuperável. Pelo facto de haver uma intersecção das duas cabeças – serão siamesas? – explode uma fantasia urbana brutal que criou o Halloween, personagem psico-dramática que deixa as pessoas fascinadas quando se cruzam com as suas músicas.
Em Portugal, Halloween “rapa” de forma pouco canónica, ora de forma lenta e degenerada, ora com inesperados berros. É muito raro no Hip Hop Tuga haver rimas que sejam debitadas sem ser uma lenga-lenga melosa, nunca é onomatopaico (como os Fu-Schnickens), gritado (Onyx) ou monstruoso – como o Horrorcore dos seminais Gravediggaz ou as produções da Psycho+Logical Records. Até os convidados de Halloween no disco estão numa linha longe do horizonte habitual, trazendo realmente mais-valias ao disco – ao contrário das dezenas de convidados que os discos de Hip Hop trazem e que nada acrescentam faixa a faixa, fenómeno aliás que também já passou há muito para a Pop ou o Metal com resultados similares. De destacar os vocais “dreadas” no tema Aleleuia A Ressurreição do Kriminal com Buts MC, J-Cap e Lord-G, que lembram os momentos mais ganzados pré-milenares de Tricky ou o gangsta assustador de Wu-Tang Clan – duas influências que se sentem nitidamente. Como vêem, Halloween é realmente Dark! E em Portugal nós gostamos de música Dark!
Os seus “beats” (o som instrumental) são minimalistas mas com uma carga dramática que une sons consensuais nas produções de Hip Hop como o banal sinfónico mas quando menos se espera acrescenta “solos” ou feedback de guitarras e sons concretos, tácticas abandonadas no Hip Hop mundial – que só os velhotes Public Enemy iniciaram e perpetuaram e deixaram Dälek como dos poucos herdeiros. Halloween não é barulhento o suficiente para estar nesta liga de peso-pesados mas não foge com o rabo à seringa, não se entregando totalmente à harmonia simplicista.
Outro ponto positivo, até diria o ponto máximo, é que não há aqui R’n’B ranhoso! É um mistério total que em todos os discos de Hip Hop haja faixas ou coros R’n’B, talvez para realçar um momento “sentimental” ou “sensível” dos artistas. O problema é que ser “sensível” não deveria significar “piroso”, e neste disco fica provado que se pode dar volta à questão. Crazy e O Ódio são os momentos “softs” mas os instrumentais destas músicas invés de irem ao vómito R’n’B lembram antes as melancolias dos Gorillaz - ou melhor, de Augustus Pablo (1954-99) uma vez que os Gorillaz rapinam este jamaicano com pompa e circunstância, e numa lógica de multiplicação Halloween também foi atrás. Mais estranho é como o disco acaba. Ainda antes de uma “faixa escondida”, o tema Debaixo da Ponte poderia ser uma balada dos Xutos & Pontapés – não que ser comparado aos Xutos seja um valor positivo (o mais certo é não ser) mas mostra como A Árvore Kriminal é tão imprevisível como uma rusga da bófia.
Mais uma música, mais um vigarista /
mais um estúpido que dança na pista /
ninguém precisa de ser um bom artista /
tu só precisas é de mais uma bebida
Halloween in O convite
Também em Halloween não há lugar para a “moralzinha”. Quase todo o Hip Hop Tuga é padreco, ou seja, os MCs dizem o que deveríamos ou deixar de fazer. Não sei o que é pior, se ser “pastor” ou não ter talento para o fazer acabando por ser reaccionário. Com Halloween não há nada disso. Os retratos que ele nos vai oferecendo não procuram convencer-nos de nada. Claro que como qualquer artista, acaba por ser “moralista” – e acho que devo esclarecer qual a diferença entre o “moralista-moralzinha” e o “moralista-artista”. Há uma mania que o público têm de achar que os artistas mais explícitos, como o Mike Diana (autor de bd norte-americano acusado de obscenidade) ou os Carcass, são depravados e “muita malucos” justamente por mostrarem imagens ou letras/sons chocantes. Mas muitas vezes estes autores são o contrário, extremamente introvertidos, e os trabalhos que produzem são imagens que necessitam de exteriorizar para não enlouquecerem – ex.: Mike Diana em julgamento teve de explicar as suas imagens ao tribunal da Florida, uma delas havia um padre a molestar crianças, Diana disse que esta imagem surgiu porque ouviu uma notícia na rádio de um padre que violava menores, que lhe ficou a imagem horrível na cabeça e teve uma necessidade de a desenhar, justamente para se libertar dela. Muito provavelmente Diana desenhou a imagem justamente para criticar a nossa realidade – bem pior que as ficções mais sádicas já criadas, escritas, desenhadas, etc... – o que no fundo mostra esse lado de crítica que acaba por ter haver com a moralização dos costumes. A diferença entre Diana, Carcass ou Halloween e os “artistas positivos” é que os primeiros não dizem explicitamente que está errado, será o receptor / leitor / ouvinte que irá julgar o que a obra lhe mostra mesmo se o desenho seja revoltante por estar cheio de genitais e esperma nas bocas das criancinhas. Halloween nas suas letras dá-nos acesso a personagens violentas, violentas com os outros ou consigo próprias, e se as letras muitas vezes são exibicionistas, Halloween não um é animal “gangsta” que anda prái a dar tiros no meio da rua, o que ele pretende é uma expiação pelos crimes cometidos por ele ou por outras pessoas que conheceu.
Se escrevia que o Halloween era bicéfalo em que a sua arte funciona da intersecção dos “dois cérebros”, é curioso que ela sintetiza de uma história oculta do Hip Hop, ignorada em Portugal mas que está mais adequada à nossa realidade do que se podia imaginar. Era um trabalho sujo que algum gajo tinha de o fazer... mesmo quando ele escreve letras que não rimam em Noite de Lisa: Não toques na bicicleta se não tens pedalada / até gosto da tua conversa mas... cala-te! Uma heresia para os puritanos do Rap? Ainda bem!
nasceram Morangos e Floribelas na campa de Salazar
Halloween in Um jardim à beira mar
O Hip Hop Tuga (péssima expressão!) tem o grande feito de ter trazido de volta a língua portuguesa para a música de cariz urbana, depois de oportunistas bacocos como os Blind Zero e Silence 4 terem tentado sepultado a língua numa enorme campanha de pseudo-globalização – previsivelmente falhada dada a óbvia falta de originalidade desses projectos. Só que os “hip hop tugas” ficaram-se por aqui, foram a resistência para o uso da língua lusa mas falharam tudo o resto ao apropriaram-se deste estilo musical de forma dogmática sem reflectirem se o modelo norte-americano fazia ou não sentido para a realidade portuguesa. Talvez por isso quase não há personalidades distintas no Hip Hop português, ou pelo menos é muito raro encontrar. Não faltam, claro, figuras inchadas, cheias de si, que contribuem apenas para que esse “Hip Hop Tuga” seja aquilo o que vernacularmente se pode chamar de uma “grande punheta” – digo-o não de forma gratuita porque basta ouvir as letras autofagicas e masturbatórias para perceber o que digo.
Claro que temos uma serie de instrumentistas competentes ou esgrimistas exímios de palavras (Sam The Kid, X-E-G) mas estas excepções surgem por serem os virtuosos de uma cena medíocre que segue um “beat” unilateral. Nas periferias deste movimento ainda vamos encontrar dois casos interessantes embora equidistantes, por um lado os Niggapoison, descendentes de Cabo Verde que começaram como banda de Hip Hop e cada vez são mais Dancehall e Kuduro, e do outro os beirões Factor Activo, vindos do Rock e que usam o Hip Hop para retratar a urbanização da província. São dois casos tangenciais ao âmago da cena. Dentro dela conheço só dois rappers que fugiram aos “templates”, são o Nerve e o Ex-Peão. O primeiro fazendo uma caricatura da vida “white-trash” e o segundo como retrato do homem desesperado versus a máquina do sistema. A juntar a estes dois artistas, (re)conheço agora Allen Halloween, com o seu novo e segundo álbum A Árvore Kriminal (Sonoterapia; 2011), que sim senhora, considero o “álbum do ano” em Portugal!
Escreve-se sobre ele nas “wikipedias”, que Allen é um luso-guineense que vive em Portugal desde os 4 anos num subúrbio lisboeta e que é um tipo reservado. Talvez por causa disso que o concerto que assisti na Music Box no final do ano tenha sido uma treta, não parece que o Halloween seja um tipo “live” – embora geralmente os concertos naquela casa nocturna não são bons, diga-se, ou porque não enche, ou porque é estupidamente cara a entrada e consumo, ou o habitual: o som da sala é péssimo. Seja como for, desconfio que Allen é bicéfalo – não se nota, ele esconde muito bem e realmente no concerto não descobri a sua segunda cabeça! Uma delas trata de temas que poderiam ser autobiográficas e pessoais enquanto que a outra encarna personagens malditas do gueto como o dealer durão ou o bêbado irrecuperável. Pelo facto de haver uma intersecção das duas cabeças – serão siamesas? – explode uma fantasia urbana brutal que criou o Halloween, personagem psico-dramática que deixa as pessoas fascinadas quando se cruzam com as suas músicas.
Em Portugal, Halloween “rapa” de forma pouco canónica, ora de forma lenta e degenerada, ora com inesperados berros. É muito raro no Hip Hop Tuga haver rimas que sejam debitadas sem ser uma lenga-lenga melosa, nunca é onomatopaico (como os Fu-Schnickens), gritado (Onyx) ou monstruoso – como o Horrorcore dos seminais Gravediggaz ou as produções da Psycho+Logical Records. Até os convidados de Halloween no disco estão numa linha longe do horizonte habitual, trazendo realmente mais-valias ao disco – ao contrário das dezenas de convidados que os discos de Hip Hop trazem e que nada acrescentam faixa a faixa, fenómeno aliás que também já passou há muito para a Pop ou o Metal com resultados similares. De destacar os vocais “dreadas” no tema Aleleuia A Ressurreição do Kriminal com Buts MC, J-Cap e Lord-G, que lembram os momentos mais ganzados pré-milenares de Tricky ou o gangsta assustador de Wu-Tang Clan – duas influências que se sentem nitidamente. Como vêem, Halloween é realmente Dark! E em Portugal nós gostamos de música Dark!
Os seus “beats” (o som instrumental) são minimalistas mas com uma carga dramática que une sons consensuais nas produções de Hip Hop como o banal sinfónico mas quando menos se espera acrescenta “solos” ou feedback de guitarras e sons concretos, tácticas abandonadas no Hip Hop mundial – que só os velhotes Public Enemy iniciaram e perpetuaram e deixaram Dälek como dos poucos herdeiros. Halloween não é barulhento o suficiente para estar nesta liga de peso-pesados mas não foge com o rabo à seringa, não se entregando totalmente à harmonia simplicista.
Outro ponto positivo, até diria o ponto máximo, é que não há aqui R’n’B ranhoso! É um mistério total que em todos os discos de Hip Hop haja faixas ou coros R’n’B, talvez para realçar um momento “sentimental” ou “sensível” dos artistas. O problema é que ser “sensível” não deveria significar “piroso”, e neste disco fica provado que se pode dar volta à questão. Crazy e O Ódio são os momentos “softs” mas os instrumentais destas músicas invés de irem ao vómito R’n’B lembram antes as melancolias dos Gorillaz - ou melhor, de Augustus Pablo (1954-99) uma vez que os Gorillaz rapinam este jamaicano com pompa e circunstância, e numa lógica de multiplicação Halloween também foi atrás. Mais estranho é como o disco acaba. Ainda antes de uma “faixa escondida”, o tema Debaixo da Ponte poderia ser uma balada dos Xutos & Pontapés – não que ser comparado aos Xutos seja um valor positivo (o mais certo é não ser) mas mostra como A Árvore Kriminal é tão imprevisível como uma rusga da bófia.
Mais uma música, mais um vigarista /
mais um estúpido que dança na pista /
ninguém precisa de ser um bom artista /
tu só precisas é de mais uma bebida
Halloween in O convite
Também em Halloween não há lugar para a “moralzinha”. Quase todo o Hip Hop Tuga é padreco, ou seja, os MCs dizem o que deveríamos ou deixar de fazer. Não sei o que é pior, se ser “pastor” ou não ter talento para o fazer acabando por ser reaccionário. Com Halloween não há nada disso. Os retratos que ele nos vai oferecendo não procuram convencer-nos de nada. Claro que como qualquer artista, acaba por ser “moralista” – e acho que devo esclarecer qual a diferença entre o “moralista-moralzinha” e o “moralista-artista”. Há uma mania que o público têm de achar que os artistas mais explícitos, como o Mike Diana (autor de bd norte-americano acusado de obscenidade) ou os Carcass, são depravados e “muita malucos” justamente por mostrarem imagens ou letras/sons chocantes. Mas muitas vezes estes autores são o contrário, extremamente introvertidos, e os trabalhos que produzem são imagens que necessitam de exteriorizar para não enlouquecerem – ex.: Mike Diana em julgamento teve de explicar as suas imagens ao tribunal da Florida, uma delas havia um padre a molestar crianças, Diana disse que esta imagem surgiu porque ouviu uma notícia na rádio de um padre que violava menores, que lhe ficou a imagem horrível na cabeça e teve uma necessidade de a desenhar, justamente para se libertar dela. Muito provavelmente Diana desenhou a imagem justamente para criticar a nossa realidade – bem pior que as ficções mais sádicas já criadas, escritas, desenhadas, etc... – o que no fundo mostra esse lado de crítica que acaba por ter haver com a moralização dos costumes. A diferença entre Diana, Carcass ou Halloween e os “artistas positivos” é que os primeiros não dizem explicitamente que está errado, será o receptor / leitor / ouvinte que irá julgar o que a obra lhe mostra mesmo se o desenho seja revoltante por estar cheio de genitais e esperma nas bocas das criancinhas. Halloween nas suas letras dá-nos acesso a personagens violentas, violentas com os outros ou consigo próprias, e se as letras muitas vezes são exibicionistas, Halloween não um é animal “gangsta” que anda prái a dar tiros no meio da rua, o que ele pretende é uma expiação pelos crimes cometidos por ele ou por outras pessoas que conheceu.
Se escrevia que o Halloween era bicéfalo em que a sua arte funciona da intersecção dos “dois cérebros”, é curioso que ela sintetiza de uma história oculta do Hip Hop, ignorada em Portugal mas que está mais adequada à nossa realidade do que se podia imaginar. Era um trabalho sujo que algum gajo tinha de o fazer... mesmo quando ele escreve letras que não rimam em Noite de Lisa: Não toques na bicicleta se não tens pedalada / até gosto da tua conversa mas... cala-te! Uma heresia para os puritanos do Rap? Ainda bem!
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