segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Visita ganzada


Sempre se disse que BD é para ser publicada e não para se expor na parede. Não sei se é por concordar em grande parte com isso que ganhei resistência a exposições de BD, ou apenas, os meus originais são tão feios e lixados que nenhum "agente da BD" queira promover exposições minhas. Não sei mas também não é que eu me possa queixar assim tanto, logo em 1998 tive direito a uma individual na Universidade De Aveiro, "Auto da Fé(rrajota)" organizada pelo Núcleo de BD e mais recentemente (o tempo passa, meu!) em 2015, a "Free Dub Metal Punk Hardcore Afro Techno Hip Hop Noise Electro Jazz Hauntology" (título homónimo do livro) na galeria da Mundo Fantasma. Pelo meio participei em algumas exposições colectivas nacionais - destaque para a “Tintanos Nervos” no CCB (2011) - e umas três no estrangeiro (Ourense, Ravenna e Pančevo).

Fico feliz que o João Silvestre me tenha convidado e que não se atreveu a colocar como "curador" porque senão recusaria logo. Tivemos trocas de emails a pensar o que faria sentido expor, é certo, mas sem uma hierarquia e esse parasitismo do intermediário. Ele organizou e essa palavra "organização" é mais catita que "curadoria", é o que acho porque acredito na cultura DIY numa óptica colaborativa (opondo a competição do empreendorismo neoliberal DIY). Daí que a maioria dos projectos que me envolvo tenham essa pretensão da "união faz a força" mesmo que, mais tarde ou mais cedo, fique só um cromo a cuidar de tudo, especialmente da parte chata da papelada. 


Comecei o fanzine Mesinha de Cabeceira em 1992 com o Pedro Brito, tendo ele abandonado o projecto no número seis (1995) porque andava exausto com a vidinha. Da minha parte prossegui com o zine ainda mais porque tinha descoberto uma força interior para desenhar as minhas autobiografias, fascinado por Harvey Pekar (1939-2010) ou Julie Doucet. É esse o primeiro bloco de originais que é aqui mostrado, as BDs vêm dos números 10 ao 12 do Mesinha, entre 1996 e 1997, sob o título "Apontamentos de Noitadas, Deprês & Bubas". Os tempos universitários eram longos nos anos 90 (pré-Bolonha), em que uma licenciatura demorava cinco anos mas que permitia perdições e explorações várias. Nessas pranchas há concretizações como um fim-de-semana ao mítico Salão de BD do Porto - no ano de 1995 em que os convidados internacionais era a malta toda da Drawn & Quarterly: Adrian Tomine, Seth, Doucet, Joe Matt, Chester Brown e Chris Oliveros. Noutras há apenas deambulações boémias já sem número, embora o Blixa Bargeld o tente fazer. Importante para mim era tentar a tarefa impossível de colocar toda a vida em papel, fosse músicas ouvidas ou desenhos feitos num "evento" (que acabavam colados nas BDs), pensamentos tão iluminados cheios de epifania (era mais pifos!) que tinham de ser registados na hora! Isto mesmo que demorasse anos para depois desenhá-los. Foi aí que que percebi que Arte precisa de tempo para arejar e que demora tempo a fazê-la. Arte não pode competir com a vida! Por fim, as pranchas eram quadradas, nunca curti o formato A4, daí que há umas BDs no topo dos originais A4 que juntos faziam de maquete para impressão dos Mesinhas mais o suplemento Meseira de Cabecinha que era o que sobrava - depois do corte para o formato quadrado. Aqui vêem-se tiras de Leonor Gomes mas noutras passaram nomes como o Janus ou Mike Diana.


Não querendo acabar como o Joe Matt - que faleceu com 60 anos em Setembro- que era um autor que confessa, na série Peepshow, TUDO sobre a sua vida privada de tal forma que acabou por destruí-la, ou apenas porque curtia a ideia de promover a BD noutras manifestações públicas, comecei a fazer BDs de critica de concertos - e mais tarde discos e livros. Comecei onde fazia sentido, um jornal de música, xunguérimo, chamado Inside em 1998. O "deal" era simples, davam-me bilhetes para os concertos e eu fazia a resenha crítica em BD. Trabalho baratinho para eles e a precariedade que aceitava era pela satisfação de ver uns gajos a abanar a cabeça, não tendo cheta para os ver - foi assim que perdi os Cramps na primeira vez. Na BD "Recuerdos" (1998) muitos concertos foram colocados na página mas quase todos sem bilhetes vindos da redação do jornal, isto porque não havia muito para contar do concerto de Soulfly para dizer a verdade, e sempre divulgava uma variedade de gente que merecia visibilidade como o fantástico Jad Fair. Anos mais tarde, em 2012, a organização do SWR Metal Fest de Barroselas convidou-me para fazer uma BD que seria incluída no DVD comemorativo dos 15 anos deste evento! Não sei o que eles esperavam de mim, sinceramente, mas curtindo Metal como gosto de muitas outras coisas na vida aceitei avisando que não sou especialista para escrever sobre guitarras (des)afinadas, pregos de bateria ou se é mais Black ou menos Death. Fiz "gonzo journalism" como fã do Hunter S. Thompson que sou até porque a caminho do festival sofri um acidente de automóvel em que sai vivo por um triz. Achei muito sinceramente a organização do festival impecável e que tal merecia ser divulgada na BD, daí falar mais com trabalhadores do que com músicos cheios de si. Quando a revista eslovena Stripburger pediu-me para fazer uma BD prás suas páginas, em 2013, a cena de Barroselas ainda estava quente para mim. Por um lado adorei o festival, por outro ouvir mexericos por lá e percebi também do lado perverso do mundo da música - neste caso Meta mas transversal a qualquer outra cena musical, artística ou profissional. Resolvi reflectir sobre esse mundo, mostrando o seu lado mais capitalista. Nesta altura já me tinha habituado a usar imagens de outros (ou minhas) para outras BDs, assim em modo de preguiça e orgasmo digital. As minhas pranchas originais começam a ter buracos enormes e ter menos interesse gráfico - fenómeno que não é novo e que se passa com muitos autores de BD desde os finais dos anos 90 com a entrada das ferramentas digitais.

Quanto à prancha dos Napalm Death (grande-banda-grande-banda!) foi feito para um número do zine suiço Milk + Wodka (2008) que completava trilogia temática "sex, drugs & rock'n'roll" - ideia tão original que mais tarde que o zine brasileiro Prego também o fez e que eu também participei! A BD faz parte de uma fase em que não me apetecia desenhar mais e restou-me desenhar com a mão esquerda para recuperar o gosto e a concentração. Fiz mais algumas destas "BDs à canhoto" para o M&W, a antologia Futuro Primitivo (Chili Com Carne; 2011) e o zine que acompanhava o EP 7" Raridades (Zerowork; 2008). Aconselho este exercício a todos desenhadores quando estiverem na merda...



Fecha-se o círculo com a questão da disposição da BD nas paredes, da generalizada ausência de poder plástico de originais de BD quando são expostos. Tema bastante discutido no seio da Chili Com Carne, tentou-se resolver a questão no "Zalão de Danda Besenhada", em 2000 na Galeria ZDB, com vários artistas a montarem instalações que acrescentassem uma aura expositiva às suas obras. Da minha parte, apresentei a BD "Vaiz curtir?" que retrata o percurso de casa dos meus pais para uma paragem de autocarro num subúrbio em Cascais. A BD revela as relações (a)sociais com o local e na parede da exposição as suas páginas eram intercaladas por fotografias ampliadas desse trajecto. É uma modorra paisagística que obviamente a BD nunca iria apanhá-la nem as fotos iriam reter o humor de viver na seca suburbana. "O Império Nunca Acabou" (adoro Philip K. Dick!) foi feito para a colectiva "Mistério da Cultura" (2007). Foi um engano de um casal de betos que tinham uma galeria em Lisboa. Nunca disse que fazia ilustração mas insistiram. Saiu este auto-retrato divido em nove partes que in extremis faz dele uma BD. Cada desenho trata de momentos culturais marcantes para mim, que me construíram quer eu queira quer não, seja xungaria tipo X-Men ou Mata-Ratos, seja o bom tom de Young Gods ou Daniel Clowes.

Resta dizer que deixei de desenhar o ano passado e este é o meu epitáfio. MF … Lx, 30/11/23

Fotos de João Silvestre

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