quinta-feira, 29 de julho de 2021

Tecla 3

Anda, Diana (Sistema Solar + Ed. ________; 2021) é um livro da bailarina e coreógrafa Diana Niepce que em 2014, num ensaio cai de pescoço de um trapézio e fica tetraplégica. Isto levou-a repensar o corpo performativo (...) A partir desse momento a sua carreira é moldada em torno da sua nova condição física, sendo convidada para participar como oradora em sessões de trabalho sobre a relação entre a arte e a deficiência. Conheci o seu trabalho curiosamente num dos poucos espectáculos que pude assistir em 2020, antes desta merda toda fechar, e fiquei completamente banzado pela sua pujança e erotismo. Este ano saiu um livro dela, um "diário ficcional" diz no frontispício e na contra-capa.

Um amigo meu disse-me que prefere ler livros "maus" a nível literário mas com força vinda de uma experiência de vida do que livros bem escritos mas que a vida decorre lá do alto da torre de marfim. Creio, que ainda há uma "terceira via", que é a do gajo da torre de marfim que trabalhe no duro e que consiga também mostrar uma força vital - lembro-me do William T. Vollman na falta de melhor exemplo. O livro da Diana é da primeira categoria, como peça literária é fraca mas a sua personalidade trespassa a escrita sem papas na língua, seja para denunciar como os deficientes motores são ignorados no trato social e arquitectónico, seja para despejar as glórias e quedas dos amores + sexo com os companheiros/as (?) ou seja quem for que lhe atravesse o caminho - várias vezes ameaça dar com a cadeira de rodas a parvalhões e imagino-a atropelar o pé de um idiota e dizer "ups! desculpe, foi sem querer...". Gaja fodida!

A escrita é fragmentada e o registo é autobiográfico, falta no entanto algum empenho em oferecer a informação proposta de forma mais acessível e compreensível - sem comprometer os envolvidos e todas as problemáticas (sentimentais ou até legais) que isso acarreta, um bom editor teria acompanhado a obra de Niepce e dado ali uns valente cortes e/ ou acrescentos. Ler este livro será um mundo novo para a maioria dos leitores, não falo do mundo da dança mas da terapia e do trauma + "a vida continua" com bexigas cheias e esvaziamentos ou falta de controlo sobre os músculos (espasticidade, clónus). É dureza ler isto, toda uma nova vida feita de vários infernos (que são realmente sempre os outros) embora seja confuso acompanhar os dramas mais específicos de Niepce devido aos "saltos narrativos" ou à falta de descrições mais específicas, sejam de relações mais pessoais (sem querer ser um voyeur sedento de sangue) ou apenas para conseguir chegar ao nome de Dergin Tokmak. Mais do que literatura factual é uma escrita do estado de espírito e sobre a capacidade de sobrevivência de uma pessoa que teve um acidente quase mortal. Gaja fodida!!

Coincidência enquanto escrevo isto, oiço o volume 22 do Godspunk (Pumf; 2021) - uma série de colectâneas DIY inglesas que mistura tudo na boa... Dub, Indie, Punk, Black Metal, Noise da treta e Harsh Noise. Neste volume a dose é dupla de CDs e no segundo disco ouve-se os UNIT - banda Punk-Hardcore com xilofone e liberto do machismo associado a este género musical - com uma música a questionar sobre os desejos sexuais dos espásticos e avisam eles que estamos apenas a uma distância de um acidente de carro para pensarmos nisso. Levam-me a relembrar que entre as dezenas de inúteis apresentações do primeiro KISMIF, a mais brilhante delas (a única de jeito mesmo) foi a apresentação de George McKay sobre a relação entre Punk e deficiência. Sacando do seu "paper": For some disabled people, punk offered expression, empowerment, visibility, humour, bad taste, and attitude, and all in a zone of socio-cultural liberation, as much as (even more than) it exploited disability or used it as a marketing strategy.

Sobre música as referências da Niepce no livro, elas são bastante "normies" - Arcade Fire (banda que deveria ser queimada), Korn (fixe se fores puto que todos os dias sonha com sexo) ou os Sinistro (o nome diz tudo)... Diana nada punk, se formos por aí. Duvido que ela alguma vez tenha sentido o apelo por esta contra-cultura e das suas consequências descritas por McKay, por exemplo. A peça que vi em 2020 e este livro são "punks", sem pejos e siga para bingo, ou pelo menos tem essa aura, sabendo que a palavra "punk" é das mais abusadas nesta década para qualquer coisa que pareça "feia" ou "suja". Essa aura se existe fez-me gostar tanto do espectáculo e também do livro, embora este último com algumas incertezas. Algumas já foram acima descritas mas a mais complicada será quando ela escreve (p.200) que um conhecido lhe disse que pelo facto de ela ter tido o acidente, é certo que teve azar mas que isso lhe trouxe visibilidade e notoriedade no meio artístico. E que ganhou uma coisa que ninguém tem - liberdade. Acrescenta que "posso ser quem eu quiser ser, que ninguém nunca vai dizer nada." Acho que na vidinha mundana e prática que levamos, percebemos tudo o que é aqui escrito, e até aceitamos e concordamos mas Niepce não aprofunda e os excertos levantam várias questões. 

Primeiro, alguém fazer uma comparação entre deficiência física com fama é de bradar aos céus, se calhar até é de ladrar aos céus! Como se uma coisa invalida ou (re)compense a outra, até porque mostra um mundinho de cristal que ignora o facto que uma artista pode ter mais tempo de antena que um vulgar cidadão só porque é artista. Não parece injusto para os "vulgares"? Já agora, nem sei se isto é verdade afinal de contas serão os programas de TV da manhã e os reality shows menos importantes que as crónicas dos besuntas do Público? Em segundo, a liberdade artística é conseguida por um acidente terrível? O que isto diz sobre o nosso estado da arte? Ou melhor ainda, o que diz sobre as pretensões e das lamentações dos artistas dos dias de hoje? O que eles querem dizer que não podem? O que tem assim tão de extraordinário para dizer que são censurados ou auto-censurados? Não dizem o quê? O que não dizem com medo de melindrar alguém do meio que tenha os cordelinhos da bolsa ou das estruturas de programação? Em terceiro, o facto de ser aleijada passa a ser imune a críticas negativas!? Não deveria. 

E já agora... o "show" dela no Teatro do Bairro Alto foi  uma seca, uma produção cosmopolita-só-porque-sim. Terá sido um trabalho pensado para a programação da casa? Não deveria ser a casa a receber apenas o trabalho da artista em estado de graça? Não digo que tenha havido influência directa e imposta da casa em si sobre a artista - seria grave, claro - o mais natural, neste século que anda mal, é que tenha sido a artista a auto-propor-se a algo estético que fizesse sentido para aquela casa de espetáculos com uma programação tão coerente. Se os artistas adaptam-se a cada novo ambiente onde estão a trabalhar, onde está essa liberdade?

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